quarta-feira, 5 de maio de 2021

João Pinto Coelho fala sobre a importância dos Livros

Neste Dia Mundial da Língua Portuguesa, não queríamos deixar de congratular os nossos escritores e, porque os livros são a melhor forma de celebrar a língua, trazemos um texto muito interessante de João Pinto Coelho (tens os livros deste escritor na tua biblioteca!).

              [Imagem de https://eurocid.mne.gov.pt/eventos/dia-mundial-da-lingua-portuguesa ]

"O meu professor de Ciências chamava-se João e era padre. Eu tinha dez anos, ele duzentos, o que, convertido ao meu olhar adulto, dará qualquer coisa acima dos sessenta, sessenta e cinco. Vestia um fato púrpura, talvez rosa-velho, escurecido, nada festivo, e foi o único professor que vi chorar numa aula. Coisa discreta, não soluçou, nem sei se deu pelas lágrimas. Nunca parou de falar e foi isso que o fez chorar: descrever-nos, estado a estado, por que passa uma flor da semente à exuberância. Não nos falou de Deus, só do milagre da vida traduzido termo a termo para a língua da Ciência, bastando para o comover.

Lá fora, nos intervalos, se no meio da correria calhássemos esbarrar com ele, o padre João sorria com os pedidos de desculpa e levava a mão ao bolso para nos dar bolas de neve. E esse milagre, sim, nós levávamos a sério - quanto mais as mãos estendidas, mais guloseimas saiam da algibeira cor-de-rosa, como Cristo já fizera ao multiplicar pães e peixes.
Mas havia outra coisa a torná-lo inesquecível: as aulas do padre João terminavam quase sempre um quarto de hora mais cedo. Nesses quinze minutos, puxava de um livro e lia-nos. Um romance juvenil, uma biografia, livros escolhidos a dedo que falavam de ciência sem que déssemos por isso. Mas quinze minutos não bastam para contar a história inteira e, ao soar da campainha, acabava-se a leitura. Com a história interrompida, havia quem lhe pedisse para ler mais uma página, nem que fosse só mais uma.
«Para a semana.»
Para a semana?! Quem é que espera uma semana, uma semana inteirinha!, para saber se o jovem Edison fez esvoaçar o amigo com a poção que inventou? Assim, oito dias depois, toda a turma comprara livro e o lera até ao fim.
Há uns tempos, perante um grupo de alunos com cerca de quinze anos, lembrei-me de lhes propor uma visita à Gulbenkian para ver uma exposição.
- Gulbenkian? Que é isso?
Um deles, julgou saber a resposta:
- É um país, não é?
Ninguém se riu.
Nós também não, basta que nos envergonhemos na sua vez.
Os dados são catastróficos: cada dia se lê menos e o pouco que se lê está longe de ser o melhor. Cresci sem computadores e internet, mas com canal e meio de televisão - o primeiro televisor a cores que tive foi graças à tela plástica - azul, vermelha e amarela - comprada numa drogaria da avenida da Igreja, a poucos metros do Júlio de Matos, destino certo de quem fosse visto com auscultadores a falar sozinho no meio da rua. Mudou tanto, não foi? O que é que nos restava sem ser o telejornal pela hora do jantar ou a certeza absoluta de que o Soares e o Cunhal e até o Sá Carneiro não treinavam os «três grandes»? E os legos, as matinés de cinema sempre num ecrã gigante, as viagens de autocarro para a Praça do Império e tantas tardes passadas no Museu de Marinha com esse cheirinho a fantasma dos nossos navegadores. Depois havia os livros, sempre os livros, a pressa de nos deitarmos para retomar a leitura. São memórias muito frescas, o suficiente para saber que o mundo não é o mesmo. Mudou, mudou muito, bem mais rápido do que a Escola.
Se alguém quiser ver nisto um saudosismo bacoco, peço que leia outra vez. Sabemos que a escola de hoje toca em temas impensáveis nas sociedades de então. O drama do nosso ensino não é ter incorporado os temas do novo século, é partir do pressuposto que os jovens atuais lhe chegam com competências, hábitos e interesses demonstrados noutros tempos, currículos e programas tantas vezes desfasados dos alunos que encontramos.
Se um livro queima nas mãos, vamos pedir a um miúdo que leia de fio a pavio como diabo era a casa que os Maias escolheram para si? Alguém imagina o peso das páginas que lhe faltam até ao fim do romance? Nem Eça nem Saramago nem o génio narrativo dos nossos maiores escritores, servidos na adolescência a quem nem pode ver livros, poderão gerar leitores. Pelo contrário, perdem-nos, muitos para sempre. Nunca desistamos dos clássicos – repito: nunca desistamos dos clássicos -, mas convém olhar para trás, é lá que está o remédio. Livres da resistência que encontramos nos mais velhos, é nos alunos pequenos que as sementes se lançam.
Mas, se em defesa da Língua, muitos falam da leitura, deixem que vos fale da escrita. É difícil perceber que é também por aí que perdemos a batalha? Que é feito das longas cartas ou dos postais ilustrados com as paisagens de praia, textos demasiados para o espaço que lhes cabia e frases atravessadas para conseguir dizer tudo? Hoje? Hoje usamos corações para assinalar as paixões e, se acaso for preciso refinar uma ironia e nos faltarem palavras, haverá um emoji com o olhar adequado para apontar o sarcasmo. Iluda-se quem quiser, mas a expressividade da língua não cabe nos telegramas dedilhados num telefone.
E assim, restam os livros, esses baús do tesouro onde a Língua sobrevive com todas as suas cores. Sem eles, temos o que sabemos, o linguajar a preto-e-branco sempre insuficiente para dizer o que se pensa, até ao dia fatal em que nos bastará. Se a Literatura é então o cofre da nossa Língua, a Escola, ninguém duvide, é a chave desse cofre. Inundemo-la de livros desde os anos mais precoces, paremos as nossas aulas um quarto de hora mais cedo para falar de Geografia e Ciências Naturais com as histórias extraordinárias que alguém escreveu um dia. Se o toque para a saída deixar a página a meio e alguém implorar nem que seja por mais uma, não se esqueçam, «para a semana». Talvez para o resto da vida."
[João Pinto Coelho, in https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=2896537543961122&id=100008147146394]

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