Herberto
Hélder (1930-2015), considerado um dos maiores poetas portugueses do século XX morreu
ontem, dia 23 de Março. “O prestígio da poesia” e "Sobre um poema", no dia a seguir ao desaparecimento
do poeta e dois dias depois do Dia Mundial da Poesia.
O Prestígio da Poesia
O prestígio da poesia é menos ela não acabar nunca do
que propriamente começar. É um início perene, nunca uma chegada seja ao que
for. E ficamos estendidos nas camas, enfrentando a perturbada imagem da nossa
imagem, assim, olhados pelas coisas que olhamos. Aprendemos então certas
astúcias, por exemplo: é preciso apanhar a ocasional distracção das coisas, e
desaparecer; fugir para o outro lado, onde elas nem suspeitam da nossa
consciência; e apanhá-las quando fecham as pálpebras, um momento, rápidas, e
rapidamente pô-las sob o nosso senhorio, apanhar as coisas durante a sua
fortuita distracção, um interregno, um instante oblíquo, e enriquecer e
intoxicar a vida com essas misteriosas coisas roubadas. Também roubámos a cara
chamejante aos espelhos, roubámos à noite e ao dia as suas inextricáveis
imagens, roubámos a vida própria à vida geral, e fomos conduzidos por esse
roubo a um equívoco: a condenação ou condanação de inquilinos da irrealidade
absoluta. O que excede a insolvência biográfica: com os nomes, as coisas, os
sítios, as horas, a medida pequena de como se respira, a morte que se não
refuta com nenhum verbo, nenhum argumento, nenhum latrocínio.
Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência.
Herberto Helder, in Servidões
Sobre um Poema
Um
poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.