terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Andamos na Lua... há 50 anos! - Textos Modalidade 3






 MODALIDADE 3 - ESCALÃO A (PRÉ-ESCOLAR E 1º CICLO)

(…) olhou para  céu e bocejou um desses bocejos do tamanho de uma casa, escancarando muito a bocarra que era considerada uma das mais competitivas da zona oriental. E aconteceu aquilo da Lua.
Deslocou-se um bocadinho, assim como quem se desequilibrou, entrou a descer devagar, ressaltou numa ponta de nuvem, que por ali pairava feita parva, e foi enfiar-se inteirinha na boca do Andrade, que só fez “gulp” e esbugalhou muito os olhos.
No sítio da Lua, lá no astro, ficou um vinco esbranquiçado como dobra em papel de seda, que logo se apagou, e o céu tornou-se bem liso e escorreito. O Beco ficou um tudo-nada mais escuro e um gato passou a correr, pardo, da cor dos outros.
(…)
Seguiu-se o alvoroço costumeiro sempre que havia novidade. Ia um corrupio de pessoal na rua a falar alto e um ror de gente em casa do Andrade, que estava sentado numa cadeira, pernas muito afastadas, pedindo muita água e queixando-se de que sentia a barriga um bocado pesada.
(…)
In Carvalho, Mário de; Pratt, Pierre (2015); O homem que engoliu a Lua; Porto; Porto Editora.



MODALIDADE 3 - ESCALÃO B (2º E 3º CICLOS)

Decorria o ano de 186, quando todo o mundo se emocionou de forma singular por uma experiência científica sem precedentes nos anais da ciência. Os membros do Gun Club, círculo de artilheiros fundado em Baltimore depois da guerra da América, tiveram a ideia de comunicar com a Lua, enviando-lhe uma bala de canhão.
(…)
 A forma da bala foi alterada, apresentando-se então cilindrocónica. Esta espécie de vagão aéreo foi guarnecido de poderosas molas e de tabiques facilmente destrutíveis, capazes de amortecer o efeito de repercussão à partida. Abasteceram-no de víveres para um ano, de água para alguns meses, de gás para alguns dias. Um aparelho automático fabricava e fornecia o ar necessário à respiração dos três passageiros. Simultaneamente, o Gun Club mandou construir, num dos cumes mais altos das montanhas Rochosas, um gigantesco telescópio que permitia acompanhar o projétil no seu trajeto através do espaço. Estava tudo a postos.
A 30 de novembro, à hora combinada, entre uma extraordinária multidão de espetadores, foi dado o sinal de partida e, pela primeira vez, três humanos, abandonando o globo terrestre, elevaram-se no espaço interplanetário, praticamente certos de alcançar o seu objetivo.
(…)
Mas circunstância inesperada, a detonação produzida pelo Columbiad teve por efeito imediato perturbar a atmosfera terrestre, por acumulação de uma enorme quantidade de vapores. Este fenómeno provocou uma indignação generalizada, pois subtraiu a Lua, durante várias noites, aos olhares dos interessados.
(…)
Mas, finalmente, para satisfação de todos, uma forte tempestade limpou a atmosfera, na noite de 11 para 12, e a Lua, meio iluminada, recortou-se no fundo negro do céu.
(…)
In Verne, Júlio; À Volta da Lua (1870); Biblioteca Júlio Verne; Círculo de Leitores.



MODALIDADE 3 - ESCALÃO C - (SECUNDÁRIO)

O Tombo da Lua
Uma ocasião, quando desapareceu a Lua, eu estava lá e sei contar tudo. Não me lembro da idade que então tinha e já na altura me não lembrava. Certo é que a noite estava muito quente e repassada de azul, assim de tinta — sói dizer-se — e a Lua tinha-se quieta, redonda e branca, brilhante como lhe competia. Pro­vavelmente, o Zé Metade cantava o fado, postado à soleira da porta, enquanto acabava um saquitel de tremoços. O Zé Metade é assim chamado desde que lhe aconteceu aquela infelicidade: quis separar o Manecas Canteiro do Mota Cavaleiro quando eles se envolveram ã facada na Esquina dos Eléctricos, por causa de uma questão, segundo uns política, segundo outros de saias. Ambos usavam grandes navalhas sevilhanas e o Zé caiu-lhes mesmo a meio dos vol­teios. Ali ficou cortado em dois, sem conserto, busto para um lado, o resto para outro. Daí para diante ficou conhecido por Zé Metade, arrasta-se num cai­xote de madeira com rodinhas e deu-lhe para cantar todas as noites um fado melancólico e muito sentido: Ai a profunda desgraça/ Em que me viste ó'nha mãiiii...
Pois nesta altura, com tudo assim quieto e a fazer olho para dormir, que o Andrade da Mula se chegou à janela e disse: «lá a calari...» e depois remirou em volta a ver se alguém lhe ligava, o que não aconteceu.
Após, olhou para o céu e bocejou um destes boce­jos do tamanho duma casa, escancarando muito a bocarra que era considerada uma das mais compe­titivas da zona oriental. E então aconteceu aquilo da Lua.
Deslocou-se um bocadinho, assim como quem se desequilibrou, entrou a descer devagar, ressaltou numa ponta de nuvem que por ali pairava feita parva, e foi enfiar-se inteirinha na boca do Andrade que só fez «gulp» e esbugalhou os olhos muito. No sítio da Lua, lá no astro, ficou um vinco esbran­quiçado como dobra em papel de seda que logo se apagou e o céu tornou-se bem liso e escorreito. O Beco ficou um tudo-nada mais escuro e um gato passou a correr, pardo, da cor dos outros.
Diz o Zé Metade, no fim duma estrofe:
— Ina cum caraças!
Vai o Andrade lá de cima e atira o maior arroto que jamais se ouviu naquele Beco.
Era o Zé Metade a berrar para dentro: «'nha mãe. venha cá, senhora, co Andrade engoliu a Lua!» e o Andrade a olhar para nós, limpando a boca com as costas da mão, um ar azamboado.
Seguiu-se o alvoroço costumeiro sempre que havia novidade. Ia um corrupio de pessoal na rua a falar alto e um ror de gente em casa do Andrade que estava sentado numa cadeira, pernas muito afastadas, pedindo muita água e queixando-se de que sentia a barriga um bocado pesada.
— Ele não teve culpa, tadinho, que ela é que se lhe veio enfiar pela boca dentro — comentava a mulher do Andrade, torcendo a ponta do avental.
— Mas se foi ele que a desafiou... — gritava a mãe do Zé dando punhadas de uma mão na palma da outra.
— Pôr-se ali na janela aos bocejos, olha a farronca! Agora vem esta a querer baralhar género humano com Manuel Germano. O meu Zé viu tudo, óvistes?
Não tardou, estava o presidente da Junta, muito hirto, no seu casaco de pijama com flores.
— Isto o meu amigo o que fazia melhor era regur­gitar a Lua, ou o Beco ainda fica malvisto — obser­vou com gravidade e voz de papo.
E o Andrade, moita, ali embasbacado, com os olhos no vago.
Deram-lhe azeite para o homem vomitar, mas nada. Limitou-se a produzir uns sons equívocos e a esboçar um ar de enjoada repugnância.
— O pior é que se ela sai pelo outro lado nos parte a sanita nova — abespinhava-se a filha do Andrade, toda de mão na anca. — Que coisa mais escanifobética...
— É levarem-no já para o hospital — gritava o Zé Metade da rua, ansioso por se ver acompanhado na sua desgraça de vítima do escalpelo cirúrgico.
Mas o presidente da Junta considerou: Então e depois a Lua onde é que punham? Quem lhes garantia que ela voltava ao sítio? E se os médicos quisessem ficar com ela lá no hospital e a prantassem dentro dum frasco com álcool? Que é que aquela gente ganhava com isso? Há? E em faltando a Lua, quais eram os inconvenientes? Hã?
— Acabam-se as marés — disse o Paulinho Marujo.
Coisa de pouca monta — afirmou uma mulher. — As marés nunca deram de comer a ninguém. E quanto à luz, depois da electricidade…
— Então como é que o amigo se sente? — perguntava o presidente ao Andrade.
— Menos mal, muito obrigado. Vai um pedaci­nho melhor...
— Então ficamos antes assim — recomendou o presidente. — Vossemecê agora toma um bicarbonatozinho, um leitinho, e ala para a cama que ama­nhã é dia de trabalho. E vocês todos, andor, para casa, em ordem, e não se pensa mais em tal seme­lhante!
E assim foram fazendo, aos poucos e poucos.
No dia seguinte, a Humanidade toda estranhou muito o desaparecimento da Lua e deu-se a grandes especulações.
Era com algum orgulho que a população do Beco via passar o Andrade. Sempre gaiteiro, apenas um pouco mais gordo.

Mário de Carvalho, Casos do Beco das Sardinheiras, Editorial Caminho


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